Olhei bem fundo nos olhinhos acrílicos. Pretos em tons de gude. Sorria aquele sorriso fixo. Com boquinha rosa e dentes bem brancos. Sem nenhuma divisão. Como se todos fossem um grande dente. As mãos em posição mesma por toda aquela vida. E o corpo firme e macio de poliéster. A roupinha: um vestidinho em tom pastel com umas flores amarelinhas e mal podia se enxergar a pintura verde das folhas. Apertei no meu peito. Acariciei aquele cabelo duro de liso com cachos presos com elástico de se prender caixa de ovo. Um laranja tão água-de-salsicha. Três pingos marrons em cada bochecha. Faziam-se de sardas. E nem era daquelas que fazem algum barulho chiado se aperta a barriga. Sempre muda. calada. Cada dia levava um nome. Cada hora era filha de alguém que se tirava da cabeça. Mas naquele instante. E no mais dolorido momento de se largar no chão - porque nem em cima da cama poderia deixar. Dorme-se o corpo cansado dos adultos sobre a cama. Não tem lugar para mais nada - foi que peguei com mais força as mãozinhas estáticas. Sorri. Cansada. Tristonha. Embasbacada. Meio sem rumo na vida. Meio sem nada que se preze. Horizonte embaçado. Respirei fundo com suspiro que se perguntava o que fazer da vida. Gravei na cabeça o que tinha colocado nela. Estou me liquidando. E estava mesmo. Arrumando tudo e meio perdida na vida. Perdida. Na vida. Não tinha outro jeito, soltei suas mãozinhas. Foi caindo rápido mas para mim era eternidade desmedida. Fez onomatopeias de quem cai no chão. Nem chorou. Continuou estática. Com o mesmo sorriso branco de dentão único. Nem fechou olhos como se faz quando se tem medo. Só ficou ali. Caída. Eu poderia recolher. Pega-la. Abraça-la e sussurrar desculpas no pé da orelha que nem buraco de ouvido tinha. Soltei a mão da minha boneca e foi como pegar umas dúzias de roupa e por num lençol velho amarrado em cabo de vassoura e como retirante sair pela vida. Experimentando o doce e o amargo dela. O duro. Fiquei desnorteada. Sem saber o sentido que se da na vida. Tentei parar para respirar e pensar. Mas faltava o ar. Estava muito pesado dentro de um clima tão turvo. A sensação é de estar vestida de regata na madrugada mais fria da estação mais gelada do ano. Não se poupa força de vontade, principalmente de se começar a viver. Só é difícil traçar itinerário para a vida. E no ato mais forte para menina é que se aprende na marra a crescer. E ainda assim se perde nuns montes de coisas a ter de resolver. Bem mais difícil que encostar colher de plástico na altura da boca da boneca e acreditar que ela comeu tudo.
(19/08/2013 - 00:40)
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Parou. Reparou. Escreveu e se foi.